terça-feira, 17 de maio de 2011

O TEMPO QUE HÁ EM MIM

Marilurdes Martins Campezi - Lula

                    Há um tempo em mim que retrata meus pés em busca de aventuras. Fugi de casa aos seis anos e senti uma liberdade nunca mais sentida. Ao ser resgatada e conduzida de volta, guardei aqui dentro o inusitado momento em que fui livre.

                   Meu tempo brincou comigo nas cirandas das danças, do pega-pega, do esconde-esconde; também dos recreios escolares ele se esmerou em depositar lembranças.

                   Outro tempo está nas memórias de meus olhos e de meus ouvidos que se deslumbraram com os personagens circenses: palhaços, malabaristas, domadores e até a charanga um tanto desafinada. Tudo daquele mundo em meu mundo está.

                   Em meu coração existe um tempo em que amores ali encontraram abrigo. São aqueles amores infantis, adolescentes e adultos que acontecem de forma imprevista e nos modificam para sempre. As pessoas que estiveram e que estão comigo, entraram como amores, mas às vezes apenas como visitas para o café.

                   O tempo das descobertas abriu minha mente e despertou minha curiosidade para o interessante: coisas sensatas e insensatas que se instalaram em mim sem pedir licença e aqui ficarão. Ainda bem que o belo fez companhia àquelas coisas.

                   Trago comigo os tempos da alegria e da tristeza, da certeza e do desespero, da decisão e da dúvida. Vieram com todas as suas tralhas, seus frangalhos ou suas joias.

                   O tempo do orgulho continua suas visitas periódicas, mas as vaidades também fazem parte de minha construção. Enquanto não as dispo de todo, ficam por aqui, alimentando meu ego contra as verdades de ser humana.

                   Eu sou o tempo que está em mim, sem opção de esquecimento. A felicidade do hoje colou-se ao meu espírito como o belo musgo verde ao tijolo úmido ou à árvore exausta de tanta chuva.

                   Nada posso apagar. Nada deve ser apagado. Sou meus passos dentro do tempo a mim doado, deixando as marcas da travessia.

                   E a vida impregnou-se desse tempo dentro do meu ser, em cada milésimo de segundo vivido, tal qual a garoa impregna o solo fofo sobre o qual se derrama.

                   Por tudo isso, o tempo sou eu. Construí-me inexoravelmente. E assim como não sei quando foi o início dessa viagem do tempo, também não sei quando será o fim.

                 Estou no meu porto de felicidade com a bagagem que o tempo carregou para mim, reconhecendo-me em todos os momentos que me permitiram e me permitem viver.

                  E houve um tempo em que procurei Deus. Peregrinei por templos de estratificados conceitos e por outros modernizados pelo homem em busca da verdade. Nestes, os conceitos eram individualizados, cada um com o rótulo salvador das ideias cristãs. Então notei que a chave não estava no tempo nem no templo e sim em mim. Assim, entrei em uma casa para me buscar e de lá estou tentando sair para os outros seres.

                 O tempo de meu corpo está se encaminhando para meu limite, mas o da minha alma ainda correrá muito por aí. É uma certeza que só o tempo me dá: a eternidade.

Marilurdes Martins Campezi é escritora, membro da Academia Araçatubense de Letras (AAL) e da União Brasileira de Escritores (UBE).

terça-feira, 10 de maio de 2011

Palavras, estranha potência, a vossa!

Antonio Luceni

Tudo que pensamos, imaginamos, projetamos e fazemos é por meio da palavra. Nosso pensamento não é feito de uma substância mágica que de modo também sobrenatural é encaminhado. Não. Antes, tudo que realizamos é por meio da palavra.

Quando falamos (palavras): “Como é fulano?”, obtemos como resposta (palavras), por exemplo: “Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca.”

Se quisermos retomar o passado e vivenciar este ou aquele momento de nossa vida iremos fazê-lo por meio da palavra: “Oh! que saudades que eu tenho / Da aurora da minha vida / Da minha infância querida / Que os anos não trazem mais!".

Do mesmo modo, todos nossos planos futuros estão sob o domínio da palavra: “Vou-me embora pra Pasárgada/ Lá sou amigo do rei/ Lá tenho a mulher que eu quero/ Na cama que escolherei”.

As grandes e pequenas histórias da humanidade estão registradas por meio da palavra: O Pentateuco, atribuído a Moisés; Ilíada e Odisseia, de Homero; Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões e Macunaíma, de Mário de Andrade são alguns exemplos de (auto)identificação do povo por meio de seu repertório escrito e, especificamente nos casos ilustrados acima, estéticos, de ficção.

Tendo em vista o exposto antes e acreditando que nossa autoimagem é constituída, em partes, pela relação que mantemos com as palavras, algumas questões são necessárias, entre as quais: Quais palavras fazem parte de nosso repertório como ser humano?

Quando nos referimos a “nosso repertório” estamos pensando na perspectiva de acordo com nossa faixa etária: se criança, se jovem, se adulto, se idoso. Nesse sentido, para cada fase de nossa vida, nossa relação com as palavras também é modificada e, deveria, de acordo como passar dos anos, ser cada vez mais inovadora, inventiva, madura, sem preconceitos.

Retomando a nossa própria formação, as experiências que tivemos com leitura e com o livro, os autores e obras que conhecemos, os livros de que mais gostamos, aqueles que mexeram conosco, que nos pegaram no primeiro parágrafo...

A partir de nossas leituras diárias, as palavras com as quais nos identificamos diariamente, quais elegemos para fazerem parte de nosso vocabulário, do nosso “falar difícil” até o nosso falar mais cotidiano, mais solto, sem preocupações formais.

Se adultos, com um repertório de vida e de palavras mais amadurecido, mais adequado para cada uma das situações. No dizer de Jorge Larrosa Bondía, “as palavras produzem sentido, criam realidade e (...) funcionam como potentes mecanismos de subjetivação. Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos coisas com as palavras e, também, que as palavras fazem coisas conosco. As palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras. E pensar não é somente “racionar” ou “calcular” ou “argumentar”, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece”.

Por essa razão quando dizemos para alguém “Eu te amo” isso deve estar cheio de sentido de verdade; quando falamos “Deus o abençoe” que seja tudo isso que entendemos e desejamos por “Deus” e “benção”; assim como quando pensarmos em “desgraçado” ou “amaldiçoado” compreendamos, antes, que sentimentos e sensações estas palavras despertarão no atingido por elas.

*Adaptação a partir de um artigo escrito pelo autor sob o mesmo título, disponível na íntegra em www.antonioluceni.blogspot.com

Antonio Luceni é mestre em Letras e escritor, Diretor da União Brasileira de Escritores – UBE.

terça-feira, 3 de maio de 2011

AS ACADEMIAS

Cecília Ferreira

Nos arredores da cidade de Atenas foi fundada por Platão a escola que ocupava um jardim banhado por fontes. De forma que as Academias (em grego com K, e em latim com C), sejam estas de letras, ciências ou artes, foram para sempre assim nomeadas em homenagem ao herói Akademus.

Entre trezentos e quatrocentos a.C., Platão teria formado a escola grega de filosofia. Poeticamente, o lugar, que ainda existe, era na época um horto de oliveiras, e o filósofo teria adquirido o terreno. Alguns elementos definiam a academia de forma diversa das demais, que conciliava as atividades didáticas com a especulação filosófica, num processo conhecido como maiêutica. Dialético e pedagógico o processo socrático multiplicava as perguntas para buscar por indução a verdade.

Nos dias de hoje a distinção entre a teoria e a prática é maior do que para um filósofo grego; mas por outro lado a escola platônica não possuía fins lucrativos, ao contrário do que sucedia com escolas sofistas mais técnicas e comprometidas com a eficácia da argumentação política ou jurídica.

Talvez a filosofia de uma academia gratuita em área particular tenha sido somente um mecanismo de defesa da própria vida. Afinal, Sócrates, de quem Platão fora discípulo, havia sido condenado à morte por não aceitar os deuses reconhecidos pelo Estado, por introduzir deuses novos, e por corromper a juventude que arrebanhava em praça pública. Bom, não é de hoje que o Estado se mete onde não é chamado quando se trata de temer a perda do próprio poder.

Então, o jardim de Akademos era o protótipo mítico dos paraísos terrenos: um mundo vegetal que se autorregenera, por oposição à pedra da cidade e às suas ruínas. Ruínas morais, físicas e intelectuais. Daí a ilusão da imortalidade intelectual oriunda de se pertencer a alguma academia: imortalidade construída sobre a morte de Sócrates. E, como o jardim por sua distância exigia o esforço pessoal do deslocamento do aluno, que só por vontade própria frequentaria o interior daquelas muralhas particulares às quais só se ingressava por meio de uma estreita porta, Platão se livrava de possíveis acusações e de condenação à morte como ocorreu com Sócrates.

Esta primeira Academia, que ao contrário das academias reais, criadas a partir do século XVII, é uma academia espontânea, surge da vontade do poder civil e não do poder político, e, ao menos nisto, se parece com a nossa Academia Araçatubense de Letras.

Uma Academia de Letras, na atualidade, não deveria ser painel de autopropaganda por intermédio de se valer de figuras externas ao seu meio para se promover diante de uma sociedade voltada para o imediatismo do espetáculo da fama alheia (como tem feito alguma Academia mais notória deste país).

Por outro lado, as academias, para valerem-se honestamente da prerrogativa de usar o título que Platão emprestou às escolas que pretendem avançar no estudo e formação das ciências, letras, e/ou artes não devem usar critérios excludentes, principalmente se este for financeiro; muito menos se limitar a julgar-se superior às modernidades que o mundo atual apresenta em novas mídias diante daqueles que se dedicando a ampliar e valorizar suas capacidades artísticas pessoais desejem ingressar em tais academias.

Porque a Academia de Platão foi como raiz: Resistência ou Inexistência. Nesse sentido as atuais caminham claramente para a morte. Umas por escolhas pouco ligadas aos seus sobrenomes (seja letras, ciências, filosofia e/ou artes), outras por não se modernizarem a ponto de aceitar as novas mídias como possibilidade de grimpo de joias verdadeiras e já bastante bem lapidadas (porque sem dúvida as há).

Aqui finaliza Platão: “Os males não cessarão para os humanos, antes que a raça dos puros e autênticos filósofos chegue ao poder, ou antes, que os chefes das cidades, por uma divina graça, ponham-se a filosofar verdadeiramente.”

E eu finalizo com Rui Barbosa: “O que preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”.
 
Cecília Ferreira é jornalista e escritora, membro da Academia Araçatubense de Letras (AAL) e da União Brasileira de Escritores (UBE).