terça-feira, 11 de janeiro de 2011

UM JARDIM AO PÉ DA PORTA

Menalton Braff*

Quando entrei na sala, outro dia, um aluno, desses que vivem nas sombras, perguntou: Professor, por que poesia? Foi então que entendi o sentido de "óbvio ululante", e percebi que nunca entendi direito o que seja axiomático. Poesia, ora, a poesia! E é possível vida inteligente sem poesia? Não respondi nesses termos, evidente, mas foi o que primeiro, e antes da resposta, consegui pensar.
            Controlados os impulsos iniciais, regulada novamente a respiração e a pulsação retornando aos poucos a seu ritmo, digamos, aceitável, a resposta me saiu meio ao estilo da maiêutica socrática. A primeira pergunta foi se os animais se alimentam, e a resposta, obviamente, foi positiva.  Mas todos?, insisti. E meu aluno, já meio desconfiado (não vivemos, nota-se logo, por volta de 420 a. C.), confirmou mais uma vez. Continuei perguntando se mesmo os seres humanos procediam assim. Agora um sorriso sardônico de vitória antecedeu a resposta: Claro, os seres humanos são também animais. Ele só não repetiu Hegel, dizendo que ao tomarem consciência de que são animais os seres humanos deixam de sê-lo, para tornarem-se seres espirituais. E não repetiu porque sua pouca idade não lhe dera ainda tempo de ouvir a voz dos filósofos.
            Desfeitas todas as dúvidas a respeito da alimentação dos animais, prossegui perguntando se os animais descansam, se eles se reproduzem e a resposta foi sempre igual.
            Depois de uma pausa dramática, talvez excessivamente teatral, perguntei a meu jovem aluno se em sua casa havia um jardim. Mais desconfiado ainda de estar sendo conduzido a uma cilada, até meio encolhido na carteira, ele disse, num fio de voz ("num fio de voz", antigamente, era considerado um clichê), que sim, que havia.
            Meu discurso então saiu dos bons trilhos pedagógicos, que devem procurar sempre um tom aliciante. Meu garoto, trovejei, você come e o cavalo também. Você descansa e o cavalo descansa. Você se reproduz (se não de fato, pelo menos em potência) e o cavalo também. Mas isso não é um silogismo e nem você é um cavalo. O que o salva, entretanto, de ser um mero animal como os outros, é que você cultiva um jardim ao pé de sua porta.
            Acho que meu aluno, a despeito de meu gauchismo na expressão de meu pensamento, entendeu o que tentei dizer. Na semana seguinte apareceu na escola com um livro do Drummond, na mão. Estive tentado a dizer "debaixo do braço", mas essa expressão é pejorativa, significa que o livro é apenas um enfeite, e meu aluno demonstrou que estava realmente lendo o Drummond.
            Se as necessidades básicas do corpo estão satisfeitas, só podemos pensar em qualidade de vida referindo-nos às artes, que o espírito humano veio produzindo através da história e que constituem as mais altas conquistas da civilização, bem mais altas do que as conquistas tecnológicas, porque todas elas centradas na matéria, e o ser humano, repercutindo Hegel, é ao mesmo tempo matéria e espírito.

* Menalton Braff é escritor, ganhador do Jabuti, e Diretor de Integração Nacional da União Brasileira de Escritores - UBE.
** Texto puclicado originalmente no jornal Folha da Região, em 11/01/11, na coluna Tantas Palavras, do Núcleo UBE Araçatuba e região.

2 comentários:

  1. Como seria viver sem poesia e sem a poesia...o jardim, por exemplo, como falar da beleza da rosa ou da graça da margarida sem a poesia . A Rosa, por exemplo, tem olhos verdes. A Margarida, o sorriso da Kim Novak....

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