terça-feira, 25 de janeiro de 2011

VIDA CACHORRA

Joaquim Maria Botelho

O cheiro açucarado de cocada cozida enjoava o estômago. Mas demorou vários minutos para que identificar o aroma. Abriu os olhos devagar, aturdido ainda. Tinha o corpo todo dolorido. Lambeu, para umedecê-los, os beiços secos, repuxados. Os olhos pareciam pregados; era difícil mantê-los abertos. Além disso, a luz ofuscava. Era dia alto, nem sabia que horas seriam. Gente passava, no burburinho da margem do rio, mas não lhe prestava atenção. Na calçada, do outro lado da rua, a baiana começava o pregão, remexendo na panela os pedaços de coco misturados a muito açúcar, derretido no fogareiro.

“Olha a cocaaaada! Coco puro, cocada feita na hora! Esse menino, num vai levar uma cocada pra mãínha?”

A calçada era dura, irregular, suja, mas não conseguia se levantar. Esforçou-se duas vezes e não pôde. Sentia-se tonto. Resignou-se a ficar mais algum tempo deitado. Decerto se refaria em poucos minutos. Ia esperar. Repousaria ainda um pouco. Ou quem sabe o que queria mesmo era aproveitar mais um tantinho daquela sensação de abandono? Tentou não se apavorar. Especialmente com as lembranças da madrugada. Aqueles homens que ele imaginava boas pessoas agiram com ele como animais. Espancaram-no, escorraçaram-no. Órfão desde muito, nada lhe restara do apoio da família. Irmãos ele os tivera, mas quem sabia por onde andavam, se ainda viviam ou se eram felizes?...

A surra começara por um sanduíche. Tinha fome, quisera apanhar a comida e alguém o surpreendera, correndo na sua direção com cabo de vassoura e facão. Correra, prudentemente; melhor fugir, quando se percebe que a outra parte não quer saber de conversar. E com os argumentos que os homens carregavam nas mãos, não havia muito que dizer. Na fuga, tombos e pedrouços o machucavam. Caía, era alcançado e espancado. Conseguia fugir de novo, mas de novo uma pedra o acertava e ele parava, sofrendo outra surra. Até desistirem, estava meio morto. Sangravam-lhe as costas. As lascas de um dente quebrado cortavam-lhe a língua, de cada vez que procurava umedecer os beiços. Que mundo! Ele só tivera fome, só quisera comer alguma coisa, sem magoar ninguém!...

A baciada de água suja o apanhou em cheio. Passou-se um milésimo de segundo entre o bem-estar de ter sido molhado e o incômodo de se ver coberto pela água imunda, usada para lavar coco sapecado, colher de pau, mão de baiana e sabe Deus que mais. Preparava-se para reclamar; não teve tempo: a baiana arremetia aos berros pra cima dele. “Seu vagabundo, seu cachorro! Vai espantar minha freguesia, seu coisa! Espavente daqui!”

Ergueu-se, devagar, humilde, arrasado. Procurou se arrastar para longe da megera, mas as forças ainda não haviam voltado, e ele se deixou cair ao chão, pesadamente. Não demorou muito, um carro da Prefeitura apareceu e ele foi rudemente apanhado do chão e jogado para cima da carroceria. Ninguém sequer prestou atenção às suas feridas, ao seu estado. Ele era uma coisa. Um animal, por assim dizer. Estava moído, e cada sacolejo do carro multiplicava por mil as suas dores. Gemia, mas de nada adiantava. Nenhum dos homens lhe dava ouvidos.

A viagem durou horas. Ou metros. Quando o automóvel parou, estava meio desmaiado. Despertou mal-e-mal quando abriram a porta.

Agarraram-no pelos membros e foi jogado numa espécie de vala, como um cadáver. Tentou reagir, erguer-se, defender-se, mas era tarde. Os homens apontaram as armas e começaram a atirar.

Só conseguiu ganir baixinho. Um primeiro tiro arrancou-lhe a cauda. Ainda arreganhou os dentes, mas o segundo tiro varou-lhe o pescoço. Estrebuchou e morreu.

Joaquim Maria Botelho é jornalista, tradutor e professor. É presidente da União Brasileira de Escritores – UBE.

Nenhum comentário:

Postar um comentário