terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

LIVRE ARBÍTRIO


Eliane Ratier

Acordei cedo, ainda noite, queria pegar o sol no pulo, passando sobre a barra do dia, iluminando o mundo.

Esperei , esperei, esperei, em vão. Nada de sol, nada de dia. Uma luz vaga a romper a cortina de fumaça que invadia a cidade.

É tempo de queimada. Recurso antigo ainda em uso, queima da cana para facilitar a colheita.

Há promessas de multa, há juras de “fim”, prazos, mecanização à vista. De prático, nada.

Arde a cana, arde a mata e ardem também nossos narizes, olhos e gargantas.

Bichos fogem assustados do fogaréu.

Nós, bichos homens, não temos fuga, sucumbimos silentes em impotência.

Hoje crianças nascerão em júbilo e respirarão a fumaça, numa advertência de que, quem manda neste mundo é o capital.

Hoje pessoas morrerão, causando sofrimento nos que por elas são, aliviando algum parente, deixando amores inconsoláveis.

Levarão em suas narinas o odor da fumaça, lembrança da terra, da vida que continua, a mesma vida que os favoreceu ou deles se esqueceu, conforme cada caso.

Hoje noivas casarão com grandes festas e nem todo perfume francês apagará o cheiro onipresente nos salões, fumaça trazendo a imagem dos boias frias, suados e sujos , penetras na ocasião.

Também a barra do vestido da noiva estará manchada de fuligem.

Hoje as donas de casa amaldiçoarão a cana, lavando quintais , espanando os móveis, esquecendo que o dinheiro de seu sustento, de alguma forma, dela advém.

Hoje os trabalhadores irão tossindo em seus ônibus, e se dirá por toda cidade que há um surto de nova virose.

Hoje os jovens mascarão chicletes sem notar nada de anormal, pois há muita paquera e agitação, e mais tarde tem festa e jogo de futebol.

Hoje, os namorados namorarão, refugiando-se no hálito cálido do outro, em abraços de ternura, num mundo onde a fumaça é bruma a conferir à noite seu ar de mistério, a enevoar a cena, nublar a lua, disfarçar estrelas.

Hoje os escritores escreverão protestos, vociferarão notícias.

Hoje anoitecerá, e amanhã acordarei cedo, ainda noite, para cheio de esperança, flagrar um novo dia, quiçá sem fumaça.

E se a esperança se confirmar fato, acenderei um cigarro, só para comemorar a volta do livre arbítrio, e poder escolher aspirar por desejo, alguma fumaça: ar.



* Eliane Ratier é escritora e Coordenadora Regional do Núcleo UBE Ribeirão Preto e região.
** Texto publicado originalmente na coluna da UBE "Tantas Palavras", Folha da Região, D2, 15/02/11.

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