terça-feira, 18 de janeiro de 2011

COISA DE FICCIONISTAS


Cecília Ferreira*

“Não se pode ler um livro, só se pode relê-lo.” Vladimir Nabokov

“A minha alma é irmã de deus”, Prêmio São Paulo de Literatura 2010 e romance de Raimundo Carrero, é helicoidal. Ou seja, dá três passos adiante e retorna concentricamente dois passos atrás; repete-se, adianta-se, retoma para avançar da mesma forma. Lento e repetitivo rochedo de Sísifo; mas vulcão, ao invés de mero penedo, porque crescente.


Há qualquer coisa viciante na forma, e atrai por cinquenta, cem páginas talvez. Guardado o devido respeito para a capacidade de inserir despretensiosamente a lascívia mentalmente perturbada da protagonista Camila em meio ao cenário metropolitano e seus antigos usos, o leitor só quer ver o fim; mas não pula nenhuma frase porque pensa que a qualquer momento o autor vai, enfim!, conceder informação surpreendente e dar luz ao linguajar caracoleado.


No tagarelar direto, o narrador é indireto. A versão pernambucana de Sibila*, a vadiar entre o delírio psíquico e a lucidez imposta por femininas e tocantes necessidades físicas como batons e roupas íntimas, exibe a personagem que enlouquece a si, às suas variadas personalidades, e à nós leitores.


A crítica literária Andréa Ribeiro, elogiando disse: “Não é preciso reinventar a roda”. Mas Carrero reinventa a roda linguística, perfeita para textos concisos, e só chega ao romance por fôlego de paciência gráfica. Como quem fez caber num pescoço uma aliança e não um colar, o pretenso romance, irmão gêmeo do conto, é uma ilusão.


Carrero, que faz uso do método de retomar fórmula anterior de sucesso pessoal, afirmou (não ineditamente): Afinal, todo autor escreve uma obra só. Ao longo do livro faz uso de frases de outros autores, sem colocá-las entre aspas, para, segundo ele, abrir partes narrativas do livro. Depois (numa espécie de declaração póstuma da construção do romance que era conto, ou conto que foi premiado como romance) o autor informa quais frases “emprestou” de outros autores.


Ou seja, as duas sentenças mais interessantes (aquelas que dão estalidos de acepção ao cérebro – pela forma escrita, ou pelo gostoso estranhamento) não são dele. Se leu e pensou: já li isso em algum lugar..., de fato leu. Porque só ao final, num posfácio confessional o autor, magnânimo, nomeia autores e aponta passagens que ao longo da narrativa não estão aspeadas. Destaco duas delas que me fizeram esperar, inutilmente, por mais construções tão interessantes: “Uma pessoa era uma comunidade inteira” de William Faulkner, e “O que chamam de amor é o exílio” de Samuel Beckett.


A frase mais interessante de Carrero não está no livro. O autor de “A minha alma é irmã de deus”, falando sobre Ronaldo Correia de Brito, que com “Galiléia” foi vencedor em 2009 e, como ele, é nordestino, disse em tom de brincadeira: “Está na hora de São Paulo aprender que os nordestinos estão, de fato, invadindo a cidade”.


Mas se a imensa maioria da população de São Paulo ainda não souber disso é porque os próprios nordestinos, que adotaram a capital, se esqueceram de onde vieram.


O vencedor de 2010, autocomplacentemente, também afirmou: “Estamos produzindo uma literatura desprovida de folclore e muito calcada nos relacionamentos humanos”.


Mas a verdade é que, ao longo de todo o longo conto, a protagonista não se relaciona humanamente com ninguém além dela mesma. Camila, no conjunto de suas características e no descrever a realidade distorcida pela visão doentia, se encaixa mais na demopsicologia do que na realidade. Totalmente folclórica Camila é, portanto, uma personagem que desmente o seu autor.


As afirmações de Carrero não têm muita ligação com a realidade.


Coisas de ficcionista...


*Cecilia Ferreira é jornalista e escritora, membro da União Brasileira de Escritores – UBE e da Academia Araçatubense de Letras - AAL.


**Flora Rheta Schreiber: autora do bestseller Sybil (1973), a história real de uma paciente com transtorno dissociativo de identidade.

2 comentários:

  1. A minha alma é irmã de Deus diz o " cumpadi" Nabokov....e escreveu Lolita. O diabo do livro é uma fonte de pecados por pensamentos ( pois também se peca por palavras e obras ) e o carinha tem uma alma irmâ de Deus...tá bão, farsão...

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  2. Caro, faltou uma linha que isolasse a epígrafe do texto.
    Nabokov = Lolita
    Raimundo Carrero = Minha alma é irmã de deus
    Abraço

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