terça-feira, 22 de março de 2011

Morte e vida bolsa família



Hélio Consolaro



Fevereiro de 2011, em Araçatuba, na quadra da Escola Leonísia de Castro, assisti mais uma vez ao auto de natal de João Cabral de Mello Neto, Morte e Vida Severina. Trabalho do grupo Galeria4, alunos do Curso de Artes Cênicas da Unicamp.

Como eu já havia visto outras interpretações, dei aulas para vestibulandos sobre o livro, conhecia todas as palavras do texto.

Então, enquanto assistia à apresentação do grupo da Unicamp, fiquei me perguntando se todos entendiam o que viam e ouviam já que o grau de complexidade era maior devido ao alto nível artístico da apresentação.

Na verdade, não se entende uma obra de arte na primeira fruição e nem posso dizer que o meu nível de entendimento sobre a obra se esgotou. A cada leitura se aprende mais um pouco.

Assim, assistindo ao auto, fui me lembrando do jeito que eu fazia os alunos do ensino médio lerem “Morte e Vida Severina”. A TV Globo gravou o auto, obedecendo a todas as letras do texto cabralino. Assim, eu projetava a interpretação de Zelito Viana. Cada aluno devia ter o texto em mãos, acompanhando a projeção. Quando necessário, eu acionava a tecla “pause” e fazia minhas explicações.

É um auto porque tem caráter religioso e era apresentado de uma vez só, num ato só, gênero de origem medieval. Texto escrito em versos redondilhos maiores (7 sílabas poéticas, pertencente também à tradição medieval) de rimas sem um esquema regular, com repetições de palavras e de versos inteiros.

A obra possui 18 trechos divididos em duas partes: de 1 a 9 – a viagem de Severino até Recife; de 10 a 18, as experiências de Severino na capital. Nela, o autor apresenta o itinerário do retirante nordestino, que parte do sertão paraibano em direção ao litoral, em busca de sobrevivência.

Daí o nome: “Morte e Vida Severina” (e não “vida e morte”). O retirante foge da morte, encontra-a novamente na Zona da Mata, pois ausência de seca não é sinal de vida, mas a vida lhe sorri nas palavras do mestre carpina (José, pai do Menino Jesus). João Cabral antecipou-se à Teologia da Libertação, dando ao presépio uma interpretação política.

Segundo Cabral, Morte e Vida Severina “foi a coisa mais relaxada que escrevi.” E é por ela que ele é mais conhecido na literatura brasileira.

O texto foi uma encomenda de Maria Clara Machado, filha de Aníbal Machado. Ela leu, agradeceu, mas disse que não servia. Foi encenado pela primeira vez em 1954. E assim, o texto se tornou um espetáculo dos militantes da reforma agrária, antes de existir o MST. Disse Cabral: “Muita gente queria que, depois de cada espetáculo, eu subisse ao palco e gritasse: ‘Viva a reforma agrária!’ Recusei-me a fazer isso. Não faço teorias para consertar o Brasil, mas não me abstenho de retratar em poesia o que vejo e sinto”.

Vida severina, sinônimo de sofrida, comprada a retalhos. Vida cesta básica, vida bolsa família, sem direito em desistir dela.

Hélio Consolaro é professor, escritor e jornalista. Filiado à União Brasileira de Escritores – UBE.

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