Hélio Consolaro
Fevereiro de 2011, em Araçatuba, na quadra da Escola Leonísia de Castro, assisti mais uma vez ao auto de natal de João Cabral de Mello Neto, Morte e Vida Severina. Trabalho do grupo Galeria4, alunos do Curso de Artes Cênicas da Unicamp.
Como eu já havia visto outras interpretações, dei aulas para vestibulandos sobre o livro, conhecia todas as palavras do texto.
Então, enquanto assistia à apresentação do grupo da Unicamp, fiquei me perguntando se todos entendiam o que viam e ouviam já que o grau de complexidade era maior devido ao alto nível artístico da apresentação.
Na verdade, não se entende uma obra de arte na primeira fruição e nem posso dizer que o meu nível de entendimento sobre a obra se esgotou. A cada leitura se aprende mais um pouco.
Assim, assistindo ao auto, fui me lembrando do jeito que eu fazia os alunos do ensino médio lerem “Morte e Vida Severina”. A TV Globo gravou o auto, obedecendo a todas as letras do texto cabralino. Assim, eu projetava a interpretação de Zelito Viana. Cada aluno devia ter o texto em mãos, acompanhando a projeção. Quando necessário, eu acionava a tecla “pause” e fazia minhas explicações.
É um auto porque tem caráter religioso e era apresentado de uma vez só, num ato só, gênero de origem medieval. Texto escrito em versos redondilhos maiores (7 sílabas poéticas, pertencente também à tradição medieval) de rimas sem um esquema regular, com repetições de palavras e de versos inteiros.
A obra possui 18 trechos divididos em duas partes: de 1 a 9 – a viagem de Severino até Recife; de 10 a 18, as experiências de Severino na capital. Nela, o autor apresenta o itinerário do retirante nordestino, que parte do sertão paraibano em direção ao litoral, em busca de sobrevivência.
Daí o nome: “Morte e Vida Severina” (e não “vida e morte”). O retirante foge da morte, encontra-a novamente na Zona da Mata, pois ausência de seca não é sinal de vida, mas a vida lhe sorri nas palavras do mestre carpina (José, pai do Menino Jesus). João Cabral antecipou-se à Teologia da Libertação, dando ao presépio uma interpretação política.
Segundo Cabral, Morte e Vida Severina “foi a coisa mais relaxada que escrevi.” E é por ela que ele é mais conhecido na literatura brasileira.
O texto foi uma encomenda de Maria Clara Machado, filha de Aníbal Machado. Ela leu, agradeceu, mas disse que não servia. Foi encenado pela primeira vez em 1954. E assim, o texto se tornou um espetáculo dos militantes da reforma agrária, antes de existir o MST. Disse Cabral: “Muita gente queria que, depois de cada espetáculo, eu subisse ao palco e gritasse: ‘Viva a reforma agrária!’ Recusei-me a fazer isso. Não faço teorias para consertar o Brasil, mas não me abstenho de retratar em poesia o que vejo e sinto”.
Vida severina, sinônimo de sofrida, comprada a retalhos. Vida cesta básica, vida bolsa família, sem direito em desistir dela.
Hélio Consolaro é professor, escritor e jornalista. Filiado à União Brasileira de Escritores – UBE.
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